sexta-feira, 22 de maio de 2015

Diário de uma Voluntária de Saltos #23

Esta quarta-feira, quer por motivos académicos quer por causa da aplicação do exame de 4º ano, vi-me impedida de ir ao meu voluntariado. Para compensar, e como já tenho feito várias vezes, fui ontem. Poderia ter sido uma quinta-feira normal e tranquila não é? Mas que graça é que isso teria? Nenhuma, responderia a (peste) Nicole. 

Ontem a matéria era o Euro. Iam aprender as moedas e a contá-las. Um facto interessante sobre crianças de bairros é que têm uma facilidade muito maior neste tipo de raciocínio com o dinheiro pois é uma realidade a que estão habituados. É muito mais fácil para eles fazer contas com dinheiro do que, por exemplo, para crianças de colégios (afinal ir comprar gomas e pastilhas tem uma utilidade prática). Um dos exercícios era colar as moedas nos repetivos lugares de modo a formar uma determinada quantia. Claro que a minha peste é muito alternativa e, em vez de colar as moedas no livro, preferiu armar-se em engracadinha e colá-las nos olhos. Ralhei com ela mas não ligou. Passou a aula toda distraída e com a caneta na boca. Ralhava com ela mas era o mesmo que falar para uma porta. Disse-lhe que ia ficar de castigo. Não acreditou. 
Chega a hora do lanche. Diz que vai levar a caneta para o recreio e que quer ir para o ginásio. Só lhe digo para ir buscar o lanche e vir ter comigo. Fui buscar a chave de biblioteca. Entramos na sala e digo-lhe para se sentar:

"- Achas que te portaste bem?
*Silêncio*
- Não me ouviste a ralhar contigo?
- Ouvi.
- Então porque é que continuaste a portar-te mal?
*Olha para o chão*
- A sério, explica-me porque gostava mesmo de saber porquê?
*Silêncio*
- Porquê?
*Silêncio*
- Porque é que não estavas a prestar atenção quando a professora estava a falar? Percebes muito daquilo?
- Sim.
- Então porque é que quando eu te perguntei a resposta tu não me respondeste?
- Ah, eu fiz isso de propósito.
- Não, não fizeste! Eu percebi muito bem que tu não sabias e ainda assim tu preferiste armar-te em engraçadinha de serviço!"

Continua sem me responder e evita olhar-me nos olhos (ah! já estás a perceber que a coisa não te está a correr muito bem).

"- Tens alguma coisa para me dizer?
- Sim.
- Diz lá.
- Desculpa."

Confesso que não estava à espera desta...

"-Vais voltar a portar-te mal para a próxima?
- Não.
- Então o que é que vais fazer para a próxima?
- Portar-me bem.
- Mesmo?
- Sim."

Já tinha passado este sermão há umas semanas e achei que tinha sido suficiente, enganei-me. Desta vez não te vais safar tão facilmente. Vais aprender da forma mais difícil.

"- Então acaba lá de comer e pão porque vais ficar aqui o intervalo todo de castigo a pensar no teu mau comportamento."

Acaba de comer e passado um pouco pede-me para fazer um desenho. Definitivamente não percebeu o conceito de castigo. 

"- Queres fazer um desenho?
- Sim.
- Então para a próxima porta-te bem."

Desta vez vais ver o meu lado mais amargo. 
Amuou. Levantou-se da cadeira e foi deitar-se no puff toda enroscada a fingir que estava a chorar. Virava-se para um lado, virava-se para o outro. Passado um bocado a Miriam entra na biblioteca com a sua Amiga Grande e senta-se numa mesa ao canto da sala a fazer desenhos. A Nicole tenta ir tem com ela mas digo-lhe que está de castigo e que não pode ir para lá, que tem de ficar sentada a pensar no comportamento que teve. Tenho a certeza que isto é das piores coisas que se pode fazer a uma criança. Ficar sem fazer nada é um terror. Um minuto mais parece uma hora e eu fiz isto durar para aí uns 15/20 minutos (o equivalente a um dia de tortura, portanto). 



Levanta-se e senta-se em frente a um computador e começa a mexer no teclado. Vou lá e arredo-o. Levanta-se a vai para a estante. Digo para estar quieta e se ir sentar. Não liga nenhuma e tira o livro na mesma. Vou lá e tiro-lhe o livro das mãos. Olha para mim:

"- Mas eu quero ler uma história!
- Queres?
- Sim...
- Então para a próxima porta-te bem
."

Fica ainda mais amuda e vai mexer nas cassetes. Vou lá e tiro-lhes as cassetes da mão. Volta a deitar-se no puff a chorar. Esta "dança das cadeiras" repetiu-se algumas vezes. Há uma altura em que decide desatar aos berros:

"-Eh pá! Deixa-me!!!
- Não te estou a agarrar.
Pára de me seguir!! Deixa-me!!!- Ainda bem que não sou surda...
- És má!!!
- Obrigas-me a ser assim. Para a próxima porta-te bem e já não sou."



Quanto mais falo mas ela se irrita. Pois é, desta vez sou eu a testar os limites dela. Chora. Tenta convencer-me através de chantagem emocional. Não resulta. Enquanto isto a Miriam tenta interagir comigo. Falo com ela ao mesmo tempo que mantenho um olho na Nicole. Do nada, levanta-se, aproxima-se de mim e dá-me um abraço. Fica abraçar-me durante uns bons 5 minutos. Pus os meus braços à volta dela.

"- Espero que saibas que vais continuar de castigo na mesma."

Estava a chegar a hora de vir embora. Arrumei o desenho que a Miriam me tinha dado (nem tudo foi mau...) e a minha peste veio ter comigo com olhinhos de cachorrinho abandonado. Agachei-me e olhei-a nos olhos:

"- Percebeste porque é que ficaste de castigo não percebeste?
- Sim...
- Sabes que se te voltares a portar mal não tenho problemas em voltar a por-te de castigo e ser má.
- Sim...
- Sabes que não é por te por de castigo que não gosto de ti. Eu gosto muito de ti."

Um beijo e um abraço e assim acaba mais uma manhã (com a paciência derretida e o juízo comido). Honestamente não me custa muito fazer isto porque sei que é para o bem dela. Não necessitaria de o  fazer se alguém o tivesse feito desde o início. Sei que o tempo que passo com ela não é suficiente para poder encaminhar totalmente, contudo tenho esperança que faça um bocadinho de diferença (embora tenha muito medo que seja completamente em vão). A cada dia que passa o projeto está mais perto de acabar... parece que ainda ontem comecei...


Lembrem-se:
Keep your heels, head and standards high,
Vanessa S.

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